Saturday, February 17, 2007
Cinza
Meu nome é Roberto. Roberto Siqueira. Mas prefiro que me chamem de doutor Siqueira. Pra impor o respeito. Gosto de usar ternos baratos e mau cortados. De preferência em tons de cinza. Aquele cinza meio riscado. Não é riscado de giz, não. São aqueles risquinhos tipo de roupa de malha. Sei que é feio. Mas acho que combina com minha profissão. No meu trabalho a roupa conta muito. Tem que combinar com o que faço e com o tipo de gente com os quais eu lido.
As gravatas, por exemplo, tenho umas lisas e muitas estampadas. Praticamente todas com nó pronto. Não sou vagabundo. Nunca tive tempo para aprender a dar nós em gravatas. Além do mais, isso pra mim é coisa de fresco. Quem tem que dar nó em gravata é mulher. Como não tenho nenhuma que mora comigo, então compro as que já vem com nó pronto, de zíper. Gosto de estampas clássicas. Clássicas, assim, como aquelas da camisa do Dunga. Mas é só pra gravata, Uma camisa assim, quiçá no Havaí...
As minhas, que uso com meus ternos -- e nos dias de calor só elas com a gravata, claro que sem desabotoar o fecho dos pulsos --, são escuras. Faz jogo com meus ternos cinzas, bem sóbrios e sérios. Hoje mesmo, que tive de ir lá naquele ambiente com ar condicionado e parentes limpas, coloquei uma das minhas preferidas, azul turquesa, 75% poliéster, que deixa o corpo bem arejado. Vesti uma das minhas prediletas porque, apesar do nojo que tenho deles, preciso causar boa impressão.
Sapato e cinto sempre são da mesma cor. Se não cumprisse essa regra estaria parecido com o outro tipo de gente que se acha poderosa e eu tenho que lidar diariamente. Eles, naqueles ambientes, quentes, abafados, sujos e descascados, é que usam sapatos caramelo de bico quadrado com cinto marrom escuto ou preto. Tsc tsc. Isso quando estão de sapato. Gostam de usar blazer marrom, verde escuro ou preto e botinas, que trazem sempre surradas e muito bem lustradas.
Tenho a pele avermelhada de sol. Talvez seja o feito do tempo, da idade. Mas certeza que o fato de eu às vezes ficar em pé, no sol, contribui. Os raios vêem direto na minha cara. Ainda bem que tenho um ray ban clássico com aro dourado. Combina com meu visual e me faz sentir bem. Meu cabelo raleando e jogado pra cima, pra trás, curto e meio encaracolado. Um cu.
Fico ali parado, fumando um Plaza, esperando chegar um cliente potencial. Gosto das mães, das mulheres mais dramáticas. Aquelas que se ardem em choro. É mais fácil tirar dinheiro delas. E, geralmente, é tudo que dá pra tirar. Por isso já aviso logo. Não faço milagres. Depende do tamanho da merda que o elemento fez. E elas respondem tá, doutô Siqueira. Mas ajuda ele, tá? Eu ajudo, minha filha, eu ajudo o tanto que posso.
Na minha Consul azul sempre tem pelo menos cinco latinhas de cerveja. Bebo Brahma. Acostumei da época que ela era boa. Chego em casa, desço o zíper da gravata e tiro do meio das crostas de gelo do freezer. Tiro o sapato e as meias finas, empurro com os pés para o lado e estico as pernas na mesa. O controle remoto é meu melhor amigo. Nunca soube o porque, mas, todo dia que chego em casa a tempo, vejo o jornal nacional. Fico pragejando pro Willian Bonner e pra Fátima Bernardes. Ah, então tá tudo lindo, né, robozinho. Filhos da puta.
É também por isso que gosto do meu trabalho. Porque todo mundo no mundo é filho da puta. Todo mundo é sujo. Todo mundo merece ser roubado. Justiça divina, entende? Todo mundo faz merda na vida. Não dá pra descontar só na parcela que roda. Essa é minha função social. Faço isso pra dar direitos iguais a todos. E não gosto de ficar com a bunda gelada atrás de uma mesa de escritório. Isso facilita minha vida.
Ando por aí com meu terno cinza desabotoado, minhas camisas escuras com gravatas estampadas; de repartição em repartição atrás do dinheiro pra minhas brahmas, minhas putas e do alívio da minha consciência. Termino as noites batendo uma punheta nervosa, meio desesperada. Não sei o por que disso. Nunca quis saber. Gozo e fico olhando para o teto. Amanhã tem mais.
Pedro Palazzo Luccas
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