Thursday, July 26, 2007

Cabeça de gato

Os tênis pareciam se recusarem a tocar o asfalto quente, passava das duas horas e o sol, esse ignorava o verde e transformava a pele nua em pele morta e tostada. Se pudesse usar o verbo, provavelmente diria: Usem filtro solar! O ônibus não demorou a aparecer, mas desta vez pensei que não chegaria e se chegasse passaria sem parar, com a idéia latente de que fui enganado pelo motorista, entrei no ônibus e tive certeza que ele ria, um riso mental, mas eu podia sentir o hálito quente do sorriso mudo que ele insistia em pensar. Ele apenas levantou o braço e solicitou meu cartão escolar, como se quisesse me ver mais de perto, precisou olhar a poucos centímetros e subitamente perguntou o nome da minha mãe, não entendi e girei a roleta.

Antes de me sentar num banco duplo, pensei se minha mãe conhecia um motorista de ônibus, logo descartei a hipótese, pois ela sempre fez amizade com os entregadores do supermercado, assim, evitaria que eles comessem os biscoitos ou tomassem um de seus iogurtes de mel enquanto carregava as compras. Meu pensamento foi estuprado por uma senhora, que tem a cabeça desproporcional ao seu corpo. Ela queria se sentar ao lado da janela. Permiti que passasse e fiquei em pé. Ela abriu a janela totalmente e o vento levantava seus cabelos de modo que sua cabeça parecia menor, seus olhos me olhavam indiscretamente, eram olhos grandes numa cabeça pequena. Ela se acomodou no banco como num convite para que eu me posicionasse ao lado dela. O espaço que sobrava era insuficiente e acabei por ficar com metade do corpo exposto no corredor e podia ver o motorista olhar insistentemente no retrovisor interno.

A mulher de olhos grandes se mexeu novamente, seus olhos me lembravam peixe. Eu podia não mais comer peixe, ela tinha cheiro de peixe e tentava encontrar a melhor posição no banco. Por um instante titubeei entre o motorista e minha companheira de viajem. Tinha medo de pensar que o motorista pensava que eu viajava com minha mãe. Abri um livro, mas não consegui me concentrar na leitura, era impossível ler, o calor que emanava do corpo gordo não era o calor que queria sentir. Não dava para trocar de banco, só os de tecido vermelho estavam desocupados, fiquei com o livro aberto fingindo ler e percebi que já não era alvo daquele olhar cirúrgico, algo o chamou para se, e não tardou até que uma criatura, supostamente fêmea, se aproximou me deixando meio surdo com um bom dia simultâneo e agudo.

As duas conversavam animadamente e o meu livro nada dizia, pensei em usar tampão nos ouvidos, mas, o motorista se recusaria a parar em frente à farmácia e além do mais, seria muito oportuno para a retardatalho ocupar meu lugar, senti ciúme e resolvi ficar ali, entre as duas com o livro a sentir pena de mim. O balançar do coletivo ditava o ritmo da conversa, nada mais inútil que ouvir segredos de quem não se conhece, mas elas insistiam em alto volume com um timbre agudo e seco como minha boca. Precisava de água, talvez nadar e quem sabe ela viria a me seguir e de repente se perderiam numa das trilhas que eu criava em minha mente. Em vários momentos subi em rochas muito altas e a mulher de cabeça pequena chegava com as mãos sangrando e me pedia água.

O ônibus parava em todas as estações e a paisagem não mudava, sempre o mesmo cenário, cheguei a tatear a mochila e os bolsos, infelizmente o transporte de explosivo não é permitido. Entrou um evangélico, todo mundo notou, o motorista não gostou, mas não protestou. Talvez ele permaneça em silêncio pra ouvir os segredos mais sórdidos e quem sabe reservar um lugar no céu para algumas almas de passageiros degenerados, sei por convicção que os epiléticos têm lugar garantido. Senti meu pequeno espaço sendo invadido por um par de peitos avantajados. Podia sentir o pulsar de um coração sob eles, mas uma blusa rosa de feira o segurava. Entre os peitos algumas notas em forma de canudinho pediam para serem socorridas, as olhei com indiferença.

Um canudinho era o instrumento que eu precisava. A mulher que estava de pé, sendo esmagada pelos peitos que aquecia meu rosto foi mais ágil, com um movimento ligeiro surrupiou o canudinho e com ele tratou de transferir cada palavra diretamente ao ouvido da mulher ao lado da janela. Ela tinha a orelha peluda, senti asco da orelha flácida e fiquei assustado com a violência que as palavras eram enviadas através do canudo avermelhado. O canudo estava a alguns centímetros dos meus olhos, eu podia ver a metade das palavras atingirem violentamente o aparelho auditivo e a outra metade do que era dito escapava e inundava o ônibus com sons confusos e errantes.

Nada pior do que as roupas sujas de palavras, o motorista tinha palavras pela metade grudadas no pára-brisa e o restante dos ocupantes gritava palavras mudas, sem brilho e descontinuas. Levantei-me calmamente, era preciso esquivar de meias palavras, pois se uma me acerta em cheio poderia decepar um dos meus braços, eu só pensava em descer do veículo, tinha meias palavras grudadas nos sapatos do motorista, metades inteiras atingiam a todos simultaneamente e a cabeça pequena aumentava de tamanho, já ocupava a metade do banco que outrora eu ocupava, não me preocupei com esse detalhe era preciso retirar uma vírgula confusa entre o motorista e o evangélico.

Alguém me pediu desculpa, desculpei a contra gosto, não encontrei referencia para o pedido insolente, achei educado e sinalizei para descer. A saída estava a um passo e dois degraus, não era possível ver a calçada, talvez não tivesse mais calçamento na cidade e resolvi continuar a viagem. Ainda restavam algumas moedas no bolso, dava pra tomar um pingado, talvez, pagasse um pinga para o evangélico, ele me parece um pau d’água recém convertido e não seria difícil convencê-lo que o motorista é amante da mulher com a cabeça pequena.

Voltei ao lugar de antes, prensado pelos peitos gigantes e a cabeça inflada não foi possível executar o plano de me sentar, as últimas palavras escorriam pelo canudinho e o temor de que o silêncio poderia provocar um levante contra a ordem passou a me confundir, não me lembrava qual era o meu destino e o outro lado da cidade já era uma realidade, senti pavor em ficar só com o motorista, ele voltaria a me perguntar o nome da minha mãe e eu poderia não responder. Esperei o ônibus parar e desci rápido e comecei a correr e só parei quatro quadras depois.

Tomei fôlego e tentei reconhecer a rua, não havia rua, eram apenas espaços vazios e pessoas de um lado pro outro, o fim do mundo, uma parte da cidade que não a compunha, mas era ela ao avesso e todas as pessoas tinham rostos conhecidos e entre eles pude identificar o evangélico, reconheço um evangélico à distância. Ele se aproximou com cuidado. O tom de preocupação revelava que ele diria algo e sem que eu o permitisse falar, gritou, um grito irritante e desordenado, era preciso voltar até ao transporte e convencer o motorista de que a mulher de cabeça pequena, agora esmagada na porta do ônibus, não era minha mãe.


Sidi Leite

Wednesday, July 18, 2007

Camisa 8

Ele adorava futebol. Ouviu toda a copa de 70 e só assistiu a final porque um conterrâneo que tinha televisão o levou pra sua casa. Espelhava-se em todos, só que Tostão era o favorito. Por isso era meio de campo ponta de lança, com a camisa 8, igual o ídolo. “Essa é a melhor posição, pega na bola o tempo todo”. Sempre dizia nas rodas de debate futebolístico.

Uma vez tentou jogar no time da capital, mas não conseguiu porque nos testes o colocaram faltando pouco tempo para terminar a partida. “Não vou entrar faltando cinco minutos, vou embora”. Nunca mais quis ir tentar fazer a vida. Preferiu administrar seu poder regional.
Trabalhava em um supermercado e gostava do que fazia, pois andava de bicicleta por toda a cidade, entregando as compras da clientela. Era seu exercício diário.

Em sua cidade tinha uma equipe que era considerada a melhor da região. O time do camisa 8 estava a quinze jogos invictos e esse repertório garantia o respaldo para conseguir o transporte da prefeitura para jogar em outras cidades e a liberação do campo municipal para os jogos de volta.

Era o líder. Em véspera de jogo não bebia e nem aceitava jogador de ressaca. Teve um lateral, filho de latifundiário, que nunca mais jogou no time nem com o pedido do pai.
Com o futebol em alta, na região do Ribeirão Lagoinha, o prefeito de uma cidade próxima resolveu organizar um campeonato. Ainda mais no ano de 1976 onde jovens tinham pouco o que fazer. Indicado ao cargo pelo governador, o prefeito era apaixonado por futebol e sempre dizia que da sua cidade sairia o novo rei dos gramados.

Mandou arrumar o campo, pintar o alambrado, lavar os vestiários e erguer um palanque para a solenidade de abertura. Queria tudo muito bem feito, pois convidaria seu governador, deputados e quem sabe um representante da presidência.

Oito times se inscreveram, e lá estava o mais conhecido jogador com o melhor time da redondeza convidado especialmente pelos organizadores. Mas uma coisa faltava para a equipe. Um nome. Nunca tinha pensado nisso e agora com o campeonato seria necessário escolher um.
Estrela não, Fortal nem, Íbis nunca. Então lembrou que um dia tinha escutado de um locutor de rádio a palavra Vanguarda, repetida muitas vezes por causa de um grupo musical que não se recorda. Esse seria o nome: Vanguarda da Barra.

Conseguiu apoio, ganhou uniforme, a cidade toda estava torcendo. Gostaram do nome. No sorteio dos jogos iria abrir o torneio. O time tinha que dar espetáculo.

Saíram às sete horas da manhã de um domingo limpo, todos em comitiva, umas 200 pessoas. No ônibus municipal somente o Vanguarda e comissão técnica. No total um massagista e roupeiro amigo que sempre acompanhava, três assistentes, 21 jogadores, cinco seguranças torcedores e o professor de educação física que desta vez se disponibilizou a participar.

“Concentração pessoal, concentração. Não podemos bobear”.

Para os demais torcedores, à distância de dez quilômetros não era muita. Bicicletas, animais, caminhões até gente que saiu mais cedo porque não tinha carona. Ao chegar à cidade perceberam a importância do torneio. A cidade sede estava polvorosa e os mais fanáticos receberam muito mal a comitiva. A polícia teve que intervir.

Palanque armado, banda tocando, muita gente esperando e preliminar com o juvenil. “Calma, ninguém desce”. Só saíram do ônibus quando tiveram a certeza que iriam para o vestiário.
Enquanto isso do lado de fora o prefeito, todo satisfeito, fica ainda mais feliz com a chegada das autoridades. O governador, deputados, o representante do Presidente e muita Polícia do Exército. Depois dos pronunciamentos os times entram em campo. A banda toca o hino nacional. As autoridades começam a descer do palanque. Muita seriedade, as fardas impõem respeito.

O locutor anuncia: “Chegou à hora, a atenção é para a bola, com vocês Atlético Campense e Vanguarda da Barra”. Na mesma hora o representante da Presidência se volta para quem falava. Faz cara feia. As pessoas nem percebem já estão de olho no gramado.

O Burocrata com seu típico uniforme do exército brasileiro após dialogar com um vereador forçador, chama o subordinado e aponta que é aquele, o camisa 8. Imediatamente o militar vai até aos outros soldados. Invasão de campo.
O Vanguarda da Barra está em círculo fechando os últimos detalhes para o início da partida. Sempre fazia reunião dentro do campo para incentivar e nem deu tempo para o grito de guerra final.

O melhor jogador da região é retirado do gramado e o jogo proibido. Quem escutou, conta que os fardados repetiam: “com esse nome não, com esse nome não!” A festa acaba, todos se vão. O melhor do time com o nome proibido é levado para a capital. Dois dias depois o dono da camisa 8 volta para a sua cidade. Não fala nada, e ninguém pergunta nada. Volta ao trabalho, se casa, para de fazer entregas e nunca mais volta aos gramados.

Vasconcelos Neto