Monday, April 23, 2007

Tormenta


A tormenta atingia a janela que ficava sobre a cama. O quarto, na penumbra, é abalado por um clarão que balança as paredes e desperta o corpo suado, já de pau duro - a lembrança da primeira mulher que vem à cabeça é suficiente.
A mão direita não consegue tocar a punheta. O ombro ainda está inchado pelo tiro de raspão, envolto em uma atadura amarelada dos dias quentes de Goiânia.


O tesão é maior, o pau ainda ereto, latejante. Resta a mão esquerda, descoordenada.
A gozada demora mais que o esperado, a bermuda mal arriada atrapalha. Não se permite pausa para tirá-la, se parar agora, mesmo que rápido, pode perder o momento. A chuva acerta a vidraça e respinga dentro do quarto, sobre o corpo que se contorce.

O ombro dói, lateja ainda mais. Uma pequena mancha de sangue aparece na atadura.
A testa salpica de um suor viscoso, a chuva já cai forte e escorre pela parede. A imagem da mulher nem mais é tão lembrada, apenas pequenos flashes.

Trata-se agora de uma questão de honra.

O membro vermelho, latejante - aumenta-se a velocidade.
A mão esquerda em solavancos fortes. Mais um pouco.
Quase...., quase...., vai..., mais uma puxada, vai porra, vai,....
a respiração presa, o ritmo frenético,
vai porra,...
agora sim, agora sim....,
sim........................................................................

Aos poucos o movimento desacelera, solta-se o ar dos pulmões e respira-se fundo, devagar. O corpo treme. Respingos da chuva estalam na grade da janela.
O quarto já escuro.
Gozado, o corpo deita-se de bruços num sono profundo.
Um último estrondo distante. A tempestade já ao longe.
Não há paz e nem há uivos

João Gabriel de Freitas

Wednesday, April 18, 2007

Marcados no coração


O dia-a-dia neste período de minha vida era de pouca diversão. Tinha 13 anos. Mas conheci um grande número de pessoas e fiz amizades inesquecíveis. O que vivi neste período faz parte do que sou hoje. Valores humanos, olhar a pessoa por dentro, no fundo dos olhos, sem observar vestuário e modos, eu aprendi até com aqueles que se juntavam para fazer pequenos furtos e arrumar brigas com gangues adversárias.

Na padaria da minha mãe, onde trabalhava de dia e a noite, mantinha contato com os outros comerciantes e neste convívio os laços se tornam fraternos. O dono do pregão, o chaveiro e seus filhos, a mecânica do conserto de bicicletas, da lanchonete concorrente, os funcionários da loteria, enfim todos tinham alguma experiência para trocar.

Nas intermináveis tardes atrás do balcão, preocupado com moscas e a limpeza do ambiente, tinha um companheiro fiel. O Chico era um solitário senhor de seus 50 anos que realmente não batia muito bem da cabeça. O que ele mais repetia era que queria um gole de café com um cigarro. Não fazia mal a ninguém e se deixasse fumava uma carteira de cigarro em três horas.

O Chico era zeloso. Todos tinham suas manias, mas a dele era especial: limpar a calçada. Só que ele não usava vassoura, era na mão mesmo. Abaixava-se para recolher tudo que era de se jogar no lixo e deixava a calçada limpa. Não sei por que, mas de certa forma, isso incomodava. Acreditávamos ser uma atividade inútil. A gente proibia, pedia para parar, mas não tinha jeito, era o que ele queria fazer, era o que gostava. E a inutilidade acabava ficando em nós.
Num domingão daqueles de nada e ninguém, estávamos nós, sentados, apenas admirando a rua, quando de repente aparece um carro da ROTAM (polícia especial de Goiânia que mete medo em qualquer um). Os policiais vieram de ré, quase enfiaram o carro dentro da panificadora Santo Cristo e desceram todos de uma só vez. Mesmo sem fazer nada, não tem como não dizer que também sentia medo.

Nessa época o Chico enfiou na cabeça que precisava de um milhão de reais emprestado para comprar um caminhão e ajudar um sobrinho que tinha um comércio de frutas no Ceasa. Pedia emprestado para quem via pela frente. E jurava devolver a grana na semana seguinte. Eu mesmo escutava isso o dia todo.

O tenente entrou na padaria, e com mais quatro soldados, pediram uma Coca-ola para beber. Eu só tinha Pespi. Ele encarou o moleque atrás do balcão, fez cara feia, relutou, quase foi embora, mas aceitou. Eu quase não me mexia. Nisso o meu querido amigo Chico se aproximou, chegou bem perto do policial olhando fixo em sua cara, e anunciou: "Hei, me empresta um milhão até semana que entra. Eu te pago". Na hora me gelou a espinha. Só um garoto, entre os policiais e um louco pedindo um milhão. Tentei explicar, e o policial entendeu. Com a negativa do PM, restou ao Chico pedir um pouco de refrigerante e um cigarro do que o PM fumava. Eu dei risada o resto do dia. Ele também. Tenho muitas saudades dele, como queria revê-lo.

Os momentos difíceis eram proporcionados pelos marginais que apareciam na padaria. O pior sempre foi o Sorriso. Bebia refrigerante, comia bolo, salgado, rosca, tomava sorvete e nunca pagava. Quando não se retirava me olhando com aquela cara irônica era porque um caminhão chamava toda a sua atenção.

Tinha um quebra-mola na frente da panificadora, e quando o caminhão reduzia a velocidade para passar, o Sorriso saia correndo, pegava rabeira e furtava o que tinha em cima. Era impressionante a agilidade dele. Descia um botijão de gás com a naturalidade de quem bebe água. E sempre dava fim no produto de roubo.

Às vezes sumia semanas, mas quando aparecia me aterrorizava. Já chegava sorrindo e eu novamente com um frio na espinha. Só um garoto tomando conta da padaria. Um dia à noite estava no telefone conversando com uma amiga quando o Sorriso apareceu silencioso. Desta vez não tinha aquele sorriso, estava afoito, ansioso, agitado. Depois de alguns minutos, invadiu a padaria, foi até o caixa, e tentou pegar o dinheiro que tinha ali.

Entramos em luta corporal, trocamos empurrões. Fiquei na porta, sem o deixar sair. Pensava: "Porra, hoje esse cara não vai sair, hoje não". Ele percebeu que aquele era um dia diferente, e eu também. Nos empurramos até que ele desistiu e me devolveu a grana. Ficamos um tempo calado. O Sorriso então começou a falar: "num quero te roubar não, é que eu tava preso e estou na fissura para fumar merla (que usa o resto de cocaína misturada a solução de bateria e é vendida em pequenas latas de alumínio. Uma das piores drogas que já conheci)".

Nisso o Sorriso começou a esmurrar uma parede chamuscada com tanta força que sua mão começou a sangrar. Passou o primeiro caminhão e o motorista percebeu. O segundo também. Ele voltava mais nervoso e agitado. Foram umas cinco porradas na parede. Não agüentei ver seu estado de abstinência, sua mão sangrava muito. Peguei dez reais e lhe entreguei. O Sorriso agradeceu e no primeiro caminhão ele se agarrou e parecia flutuar satisfeito na busca da substância que o deixava naquele estado. Na outra semana comeu, bebeu refrigerante e como sempre saiu sem pagar.

José Vasconcelos Neto