Wednesday, April 18, 2007

Marcados no coração


O dia-a-dia neste período de minha vida era de pouca diversão. Tinha 13 anos. Mas conheci um grande número de pessoas e fiz amizades inesquecíveis. O que vivi neste período faz parte do que sou hoje. Valores humanos, olhar a pessoa por dentro, no fundo dos olhos, sem observar vestuário e modos, eu aprendi até com aqueles que se juntavam para fazer pequenos furtos e arrumar brigas com gangues adversárias.

Na padaria da minha mãe, onde trabalhava de dia e a noite, mantinha contato com os outros comerciantes e neste convívio os laços se tornam fraternos. O dono do pregão, o chaveiro e seus filhos, a mecânica do conserto de bicicletas, da lanchonete concorrente, os funcionários da loteria, enfim todos tinham alguma experiência para trocar.

Nas intermináveis tardes atrás do balcão, preocupado com moscas e a limpeza do ambiente, tinha um companheiro fiel. O Chico era um solitário senhor de seus 50 anos que realmente não batia muito bem da cabeça. O que ele mais repetia era que queria um gole de café com um cigarro. Não fazia mal a ninguém e se deixasse fumava uma carteira de cigarro em três horas.

O Chico era zeloso. Todos tinham suas manias, mas a dele era especial: limpar a calçada. Só que ele não usava vassoura, era na mão mesmo. Abaixava-se para recolher tudo que era de se jogar no lixo e deixava a calçada limpa. Não sei por que, mas de certa forma, isso incomodava. Acreditávamos ser uma atividade inútil. A gente proibia, pedia para parar, mas não tinha jeito, era o que ele queria fazer, era o que gostava. E a inutilidade acabava ficando em nós.
Num domingão daqueles de nada e ninguém, estávamos nós, sentados, apenas admirando a rua, quando de repente aparece um carro da ROTAM (polícia especial de Goiânia que mete medo em qualquer um). Os policiais vieram de ré, quase enfiaram o carro dentro da panificadora Santo Cristo e desceram todos de uma só vez. Mesmo sem fazer nada, não tem como não dizer que também sentia medo.

Nessa época o Chico enfiou na cabeça que precisava de um milhão de reais emprestado para comprar um caminhão e ajudar um sobrinho que tinha um comércio de frutas no Ceasa. Pedia emprestado para quem via pela frente. E jurava devolver a grana na semana seguinte. Eu mesmo escutava isso o dia todo.

O tenente entrou na padaria, e com mais quatro soldados, pediram uma Coca-ola para beber. Eu só tinha Pespi. Ele encarou o moleque atrás do balcão, fez cara feia, relutou, quase foi embora, mas aceitou. Eu quase não me mexia. Nisso o meu querido amigo Chico se aproximou, chegou bem perto do policial olhando fixo em sua cara, e anunciou: "Hei, me empresta um milhão até semana que entra. Eu te pago". Na hora me gelou a espinha. Só um garoto, entre os policiais e um louco pedindo um milhão. Tentei explicar, e o policial entendeu. Com a negativa do PM, restou ao Chico pedir um pouco de refrigerante e um cigarro do que o PM fumava. Eu dei risada o resto do dia. Ele também. Tenho muitas saudades dele, como queria revê-lo.

Os momentos difíceis eram proporcionados pelos marginais que apareciam na padaria. O pior sempre foi o Sorriso. Bebia refrigerante, comia bolo, salgado, rosca, tomava sorvete e nunca pagava. Quando não se retirava me olhando com aquela cara irônica era porque um caminhão chamava toda a sua atenção.

Tinha um quebra-mola na frente da panificadora, e quando o caminhão reduzia a velocidade para passar, o Sorriso saia correndo, pegava rabeira e furtava o que tinha em cima. Era impressionante a agilidade dele. Descia um botijão de gás com a naturalidade de quem bebe água. E sempre dava fim no produto de roubo.

Às vezes sumia semanas, mas quando aparecia me aterrorizava. Já chegava sorrindo e eu novamente com um frio na espinha. Só um garoto tomando conta da padaria. Um dia à noite estava no telefone conversando com uma amiga quando o Sorriso apareceu silencioso. Desta vez não tinha aquele sorriso, estava afoito, ansioso, agitado. Depois de alguns minutos, invadiu a padaria, foi até o caixa, e tentou pegar o dinheiro que tinha ali.

Entramos em luta corporal, trocamos empurrões. Fiquei na porta, sem o deixar sair. Pensava: "Porra, hoje esse cara não vai sair, hoje não". Ele percebeu que aquele era um dia diferente, e eu também. Nos empurramos até que ele desistiu e me devolveu a grana. Ficamos um tempo calado. O Sorriso então começou a falar: "num quero te roubar não, é que eu tava preso e estou na fissura para fumar merla (que usa o resto de cocaína misturada a solução de bateria e é vendida em pequenas latas de alumínio. Uma das piores drogas que já conheci)".

Nisso o Sorriso começou a esmurrar uma parede chamuscada com tanta força que sua mão começou a sangrar. Passou o primeiro caminhão e o motorista percebeu. O segundo também. Ele voltava mais nervoso e agitado. Foram umas cinco porradas na parede. Não agüentei ver seu estado de abstinência, sua mão sangrava muito. Peguei dez reais e lhe entreguei. O Sorriso agradeceu e no primeiro caminhão ele se agarrou e parecia flutuar satisfeito na busca da substância que o deixava naquele estado. Na outra semana comeu, bebeu refrigerante e como sempre saiu sem pagar.

José Vasconcelos Neto

2 comments:

Anonymous said...

Aê Neteras! Como lhe falei, curti seu texto cara. Sem firulas. Busque na internet sobre Charles Bukowski que vc não vai se arrender. Tem muita coisa do cara na net: poesias, contos, história pessoal,... Se puder leia tudo!
Grande abraço!

Pedro Palazzo Luccas said...

Porra, netão, massa! Ouve o conselho do João que é bom, hein?
Perto da minha casa, até hoje, tem um cara parecido com o Chicão. Só que que não conheço. Ele também, fia na frente da padaria e tinha mania de tampar buracos com pedaços de meio-fio, pesadíssimos (e para ele pareciam pluma), que tirava.
T+!