Tuesday, July 04, 2006

Se Me Deixam Falar...

Mulher, pobre, descendente de indígenas, esposa de um minerador, tudo isso durante a ditadura militar no interior da Bolívia. É disso que trata o livro “Se Me Deixam Falar...”, o título faz jus à falta de liberdade de expressão e repressão sofrida pela personagem principal, Domitila, a esposa de um minerador boliviano. Claro que acima de Domitila, os verdadeiros personagens principais são a injustiça, a repressão e força transmitida pela história, as lutas e busca por ideais e por uma vida melhor e mais digna.

A história se passa nos altiplanos bolivianos, aonde os mineradores recebiam uma casa de dois cômodos para morar com a família, independente de quantas pessoas fossem. Já começa aí a injustiça com os trabalhadores que movimentam a economia do país, que tem na mineração uma das suas principais riquezas. Isso antes do regime militar, com a entrada dos militares a situação muda pra pior, pois qualquer movimento de indignação por parte dos trabalhadores passou a ser reprimido com violência brutal e desnecessária.

O que mais impressiona é a história de vida da personagem, desde a infância difícil (foi criada pelo pai, um trabalhador com ideais de respeito, direitos e força de vontade), as várias situações que sofreu na ditadura militar e ainda a vontade de contar sua história para que todos saibam que isso acontece e não só na Bolívia, mas em todos os lugares. Domitila mostra uma força sobrenatural que a faz resistir desde violência física à pressão psicológica, mas não a faz abandonar seus ideais e suas qualidades, e acima de tudo faz com que ela lute em nome de todos que passaram pelas mesmas coisas que ela. De dona-de-casa a representante internacional das mulheres bolivianas, ela passou por coisas que ninguém gostaria de passar e tudo isso movida por seus ideais de justiça, dignidade, respeito ao trabalhador, às mulheres e acima de tudo ao ser humano e sua liberdade, de pensar, se expressar e trabalhar.

Com certeza, muitas pessoas não imaginam as atrocidades pela qual milhões de seres humanos passam por este mundo, e este é apenas mais um caso, que muitas vezes passam despercebidos aos olhos da imprensa e da sociedade, cada vez menos preocupada com o ser humano e sim com seu egoísmo e futilidades. Moema Viezzer soube captar a opinião de uma pessoa extraordinária e não se intrometeu, apenas relatou o que ouviu e em nada interferiu na história. Isso mostra a importância e força que podemos ter, qualquer um, independente de escolaridade, etnia, religião ou classe (condição) social. Alem disso a linguagem do livro é bem simples e fácil, permitindo que qualquer pessoa possa ler e aprender com este relato pessoal, mas que transpassa fronteiras e diferentes realidades.

Além de morarem em pequenas casas, os mineradores compravam seu alimento e outros utensílios da própria empresa pra qual trabalhavam, se submetendo a gastar quase todo seu salário com a empresa. As doenças entre os trabalhadores eram comuns, e a principal era o “mal da mina”, doença respiratória causada pela falta de equipamento de proteção adequado e pelo excesso de poeira. A carga horária excessiva deixava os trabalhadores mais fracos e vulneráveis, muitas vezes trabalhadores não tinham tempo de se alimentar da maneira ideal.

Como os maridos ficavam quase o dia inteiro fora, as mulheres acabavam sendo apenas donas-de-casa, responsáveis pelos filhos e pela casa, ficando assim sem tempo para trabalhar. Com a falta de tempo entre os homens, as esposas se uniram em um sindicato das donas-de-casa, o que permitiu a elas discutirem e repensar a situação de exploração vivida, partindo muitas vezes desse sindicato, movimentos contra a empresa.

Outra luta que ela levantava era pela valorização da mulher, o tempo todo ela deixa claro que a igualdade entre homem e mulher poderia acabar com muitos problemas da humanidade. Isso ela não aprendeu através de estudo, mas com a vida e soube perceber através de seu caso em particular, que era uma questão global. Domitila passou a infância ajudando a cuidar de suas irmãs, ficando às vezes sem tempo para estudar, então não teve uma formação das melhores na escola. Sua vivência e também muitos dos ideais de seu pai a permitiram questionar e compreender a exploração pela qual passavam os trabalhadores. É impressionante, pois até ela mesma fala que não conhecia o comunismo, mas seus ideais se aproximavam demais desta linha de pensamento, as idéias de igualdade e contrárias a exploração do homem pelo homem sempre a acompanharam, desde sempre.

Ao vivenciar tal situação na pele, não conseguia ficar parada nem calada, falava o que pensava sobre o assunto, protestava, manifestava, lutava mesmo pelos seus ideais de uma vida digna e sem exploração. Infelizmente essa luta a fez passar pelos piores pesadelos, foi presa, agredida, espancada, perdeu um filho ao ser espancada na cadeia, passou por problemas psicológicos e mesmo assim não desistiu da luta. Foi convidada a representar as mulheres dos mineiros bolivianos na ONU (Organização das Nações Unidas) e compareceu com um depoimento que deixou clara a situação que ocorria na Bolívia.

Sob suspeita de comunismo, passou a ser procurada pelo governo ditatorial e teve que fugir diversas vezes, mas sem nunca abandonar a causa e seus ideais. Muitas pessoas a aconselharam a parar, inclusive seu marido, porém sua força de vontade era maior do que seu medo, e sua indignação poderia vencer qualquer arma. Acusações absurdas foram feitas em seu nome, como, por exemplo, a de que ela recebia dinheiro de potências comunistas (como Cuba, China ou União Soviética) para armar pessoas e incentivá-las a uma luta armada. Domitila era uma pessoa pacífica e em momento algum recebeu qualquer dinheiro para incentivar uma luta armada, pelo contrário, passou por todo tipo de dificuldade por ser pobre e às vezes não tinha dinheiro nem para comprar carne para se alimentar.

Ao final do livro, em uma entrevista que Domitila cedeu a Moema Viezzer, logo após todo o ocorrido, a dona-de-casa que liderou e ajudou tantas pessoas, reafirma seus pensamentos e fala da importância das pessoas terem conhecimento do que ocorria naquele lugar específico da Bolívia, mas que com certeza acontece em vários outros lugares.

Domitila também critica a distância entre as pessoas que detêm o conhecimento, como universitários, e as pessoas que não tiveram oportunidade de se informarem. Ela diz que existe uma grande falha de comunicação entre esses dois extremos e que isso causa um grande atraso em qualquer sociedade. É importante unir o conhecimento teórico com a prática, além de unir as próprias pessoas que fazem parte dessa mesma sociedade.

Não se pode deixar de perceber também a luta pela libertação das mulheres que é claramente retratada na história e nas convicções de Domitila. Além de uma luta trabalhadora, a luta da igualdade entre os sexos, mesmo não sendo o principal assunto do livro, é de extrema importância compreender que se trata também deste tema. “Se Me Deixam Falar...” trata basicamente disto, luta trabalhadora, liberdades individuais, luta por seus ideais (desde que sejam bons ideais), e a busca de igualdade entre os sexos.

É fundamental compreender e fazer essa ligação entre os temas, pois a própria Domitila deixa explícita a importância da mulher na sociedade, na família e no trabalho. O que seria dos trabalhadores (nesse caso) sem suas mulheres para cuidarem da casa e da comida? Não existe superioridade entre os sexos, e uma mulher com pouco estudo mostra isso da melhor forma, porém passando pelas piores coisas que se pode passar (humilhação, desrespeito, violência física e psicológica). E muitas pessoas com conhecimento e diplomas ainda conseguem pensar numa superioridade entre qualquer dos sexos, principalmente homens.

Domitila mostra que enquanto houver desigualdade social, exploração e desigualdade entre homem e mulher, as coisas não poderão avançar e muitas pessoas vão sofrer, tanto quanto ela, ou até mais. A dignidade engrandece as pessoas, e conseqüentemente a sociedade, e a melhor maneira de se alcançar a dignidade é através do trabalho, do bom senso e se sentindo valorizado, seja qual for seu sexo e sua condição, ou classe social.

Gil Vieira Di Cavalcanti

7 comments:

Anonymous said...

Se deixar você falar aí você não para mais... Não tinha um texto maior não??

Pedro Palazzo Luccas said...

hahahhaha. Impagável o comentário do João. Gilzeira, pode falar, mas fala menos.

Rogério Tomaz Jr. said...

cara, discordo dos seus amigos... rs
tem que falar mesmo...
o título desse livro, que espero achar o mais rápido possível, me lembra outra figura fantástica, Seteve Biko, que nos deixou o maravilhoso "Escrevo o que eu quero"... muito bacana o blog!

Unknown said...

Após ler esse texto, acabo de confirmar o nome da minha filha, que ainda está na barriga. Será mesmo Domitila.

Marise Borba said...

Eu li este livro umas duas vezes e leria outras mais. Livro maravilhoso que me ensinou muito sobre a importância das mulheres e homens andarem lado a lado, serem legítimos companheiros de vida, chamando a atenção de uma forma muito simples, digna e verdadeira sobre a necessidade de igualdade entre homem e mulher, criticando duramente, portanto, o sexismo, cujo fim poderia acabar com muitos problemas da humanidade. Nunca esqueci desta leitura!

Familia said...
This comment has been removed by the author.
marielenesouza said...

Se me deixam falar... muito lindo esse texto, porque como disse a Domitila, essa não é uma situação
que ocorre só em um lugarejo per-
dido no interior da Bolívia, mas
uma situação recorrente no mundo
inteiro,duvido que se perguntadas,
as pessoas não conheçam várias si-
tuações de exploração do homem pelo homem parecida com essa,mas ainda bem que existem mulheres e homens de coragem e obstinação para fazer a diferença neste mundo.