Sunday, December 17, 2006

Reflexão de domingo à tarde

Há muitas maneiras de fundamentar a igualdade dos homens, uma delas é: somos iguais em angústias, incertezas, instabilidade recorrente e ameaçadora. Somos animais pensantes que se diferenciam por pequenas sutilezas, meros detalhes que nunca são suficientes para contrariar a distribuição comum dos afetos e sentidos, das vontades, de consciência e inconsciência.

Não há novidade alguma nisso. Homens e mulheres, percebam ou não, experimentam a vida como um desafio, um projeto não requerido. Talvez um presente de um deus misterioso (e, caso ele exista, genial em sua indiscrição). Talvez um fardo para a realização de uma sentença, sem que esses animais pensantes tenham acesso ao seu próprio julgamento. Que fazem eles?

Uma possibilidade é recuar e preferir a inconstante plenitude do auto-controle, a submissão a uma mente organizadora dos fatos e dos desejos. Não que seja, invariavelmente, menos doloroso viver assim. Mas essa é a intenção honesta e declarada desse caminho: o desafio deve ser quase indolor, a sofreguidão do homem deve ser dissimulada. O movimento do mar, por maior que seja o oceano, não é o da tempestade, mas o de uma fresca manhã que traz as ondas, calmamente, ao encontro de pés descalços.

É possível, também, irritar-se com o desafio, transformando-se em um diabo traiçoeiro, um anti-herói da existência. Assim, cuspir fogo bruto contra os bons costumes, agredir a lealdade e assumir todos os vícios. O homem vivo se enterra e se move, rastejante, por baixo dos pés alheios, pronto para elevar-se e transgredir novamente a lei, sedento por derrubar os ídolos que abandonou em sua inebriante empreitada. Não se incomoda com a morte ou a má consciência. Em forma de tempestade, o desafio é honrado à altura, e a água salgada transborda, invadindo pulmões, ignorando prudência.

Mas há, ainda, uma terceira via. Nela, os homens visitam uma montanha que está sempre longe, um pouco acima do mar. Do alto, contemplam e riem, estupefatos, brincando maravilhosamente com toda a seriedade do mundo. Riem e se surpreendem, todas as manhãs, todas as tardes e noites, observando mais de perto os humores do sol e da lua, da secura do clima quente e da chuva rala, ora atacando, ora reconfortando a própria pele. Por curioso que seja, procuram ao mesmo tempo o auto-controle e o diabo traiçoeiro dentro de si. Equilibram-se, pois abandonam facilmente os próprios desejos, e valorizam com uma estranha ternura a falta de sentido do mundo.

A altura da montanha não é um divisor de mundos ou verdades, e, certamente, menos ainda de homens (iguais em angústias, incertezas, instabilidade recorrente e ameaçadora). É um lugar que eles procuram. Lá, não estão preocupados com muita coisa: apenas riem. Muitas vezes fatigados, é verdade, mas, acima de tudo, incomparavelmente satisfeitos com a beleza de tudo.


Rodrigo Cássio

5 comments:

Anonymous said...

"Cada montanha é um Buda."
Kerouac, em Vagabundos Iluminados

Anonymous said...

Grande Kerouac! Está na minha lista de autores a serem conhecidos.

Bem lembrado, hein?

Lorena said...

montanha....
nunca quis tanto subí-la!

"Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos"

Anonymous said...

"Nesse tempo levava as suas cinzas para a montanha. Quererá levar hoje o seu fogo para os vales? Não terá medo do castigo que se reserva aos incendiários?
(...)
Zaratustra mudou, Zaratustra tornou-se menino, Zaratustra está acordado. Que vais fazer agora entre os que dormem?"
(do "primeiro erro de Deus"...)

abraço,

Anonymous said...

Igor: Se o texto fosse uma charada, você teria acertado a resposta.

Abraço!