Friday, June 08, 2007

Zodíaco, de David Fincher *

Uma das faces mais surpreendentes da sociedade da informação é o poder da mídia de determinar os pensamentos, sentimentos e valores que tornam possível a convivência organizada das pessoas em um grande grupo. A imprensa preenche com incomparável sucesso e facilidade essa dimensão superior, responsável por renovar constantemente a percepção que cada um tem de si mesmo como integrante de algo maior. Há pouco mais de um século, essa dimensão superior, universal, onipresente e poderosa, ainda se erigia em nome de um Deus modelar e unificador. Na era em que a “morte de Deus” é algo consumado, garantir a auto-coerção dos homens exige o fortalecimento e enobrecimento das instituições, que passam a oferecer à humanidade a impressão ingênua de que cada um, enquanto homem livre e universal – tal como era o Deus morto – assumiu plenamente o controle da sociedade.

A onipresença da informação ocorre por via direta (dos meios de comunicação para indivíduo) ou indireta (dos meios de comunicação para um indivíduo e dele para outro indivíduo, infinitas vezes), abarcando todos os pensamentos e ações possíveis. Para os que ainda se entusiasmam, é indiferente a existência de homens no começo e no fim do processo; a “reciprocidade”, o feedback, a “resposta” está pré-determinada; o movimento é sempre um movimento de retorno, do mesmo ao mesmo. Sem Deus, é o homem que está em todos os lugares, no começo e no fim do processo, e também no meio – ou nos “meios”; os homens são esses meios, é isso que Zodíaco deixa à mostra em seus momentos mais breves, exatamente os únicos que devem ser lembrados depois de uma narrativa dispendiosa que envolve o espectador, sorrateiramente, com o mesmo excesso de informações que fundamenta a trama.

Nesse passo, o desafio impossível que pode ultrajar o espectador – em sua “dignidade de homem livre”, que se diga – é comunicar-se ou agir de tal maneira que não exista qualquer elemento inspirador aproveitando-se da sua fala e do seu ato, sempre a serviço da manutenção premeditada do todo. O revolucionário venezuelano está no mesmo patamar do soldado norte-americano. É o homem que dá a si mesmo a sua violência, como o cerne da notícia policial ou a preocupação que sustenta a própria polícia; é o homem que perpetua o movimento e exige uma incompreensível justiça. Qual justiça? A única que Zodíaco oferece é o distanciamento, a fuga, o medo contido de Melaine (Chloë Sevigny) que, apesar dele, mantém o olhar ríspido e pontual, exigindo do marido o compromisso nunca verbalizado de uma boa vida moderna, o way of life, a satisfação graciosa de quem se esconde por trás dos óculos nerd e da admiração correta pelos mais fracos.

Nada diferente da mulher que se lança do carro com o filho nos braços. Nada diferente do possível assassino que se diverte, ao mesmo tempo, com revistas pornográficas e com os jornais nos quais publica seus crimes; são mulheres nuas e notícias gravíssimas, sexo explícito e cartoons pouco talentosos, ou, alternando os objetos para as vidas, policiais dedicados e esquilos esquisitos – falsas dicotomias que se ampliavam e solidificavam nos anos dourados que Zodíaco pretende representar, com tanto sucesso quanto possível para ser um ótimo argumento ideológico contra Clube da Luta. Se há algo que chama a atenção no novo filme de David Fincher, além disso, é que ele não precisava de mais do que a metade da sua duração, poupando o espectador de todo o levante heróico de Graysmith (Jake Gyllenhaal).

O zodíaco, não há dúvidas, ele não existe. Ele é o sucesso, a obediência à ordem; mais que isso, é o sucesso do modelo de trangressão que a ordem carrega em seu seio, o sucesso da própria ordem. Ele é o entusiasmo que ilumina os voluntários sem nome quando se entregam, no auge das investigações policiais, ou a empolgação efêmera que domina qualquer um dos espectadores, ocultos pela penumbra da projeção e esgotados com as possibilidades do mundo que, movimentando-se, se reinventa.

Rodrigo Cássio

* Texto em homenagem a Jean-François Lyotard

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