Monday, March 06, 2006

Brownie and Black




Naqueles dias o céu estava cinzento. O ar carregado e com um cheiro azedo, de suor ressecado. As ruas vazias intensificavam a sensação de que o coração fica menor dentro do peito. A brisa quente carregava folhas ressecadas e cheias de poeira. Elisa seguia pela Rua do Contorno, rente ao Parque Mutirama, na tentativa de ir pela sombra. O coturno lhe apertava o calcanhar do pé esquerdo, mas ela já estava acostumada àquela dorzinha leve e aguda. No fundo, até gostava. Mantinha no rosto o semblante e a maquiagem de quem passou três horas aos prantos. A roupa preta não era só estilo: guardava luto fechado pela morte de seu gato, Brownie, um angorá preto e peludo, atropelado pelo caminhão do gás dois dias antes.

Três anos antes, quando tinha doze anos, sentiu o sangue descer pelas pernas e mudou de comportamento. Até então brincava com as primas, gostava de ir ao clube e de aprender receitas com Roberta, a empregada que a viu passar pela puberdade. A marca da adolescência trouxe junto com os parcos seios o sentimento de exclusão. Tentou se adaptar às primas que, contemporâneas, passaram a gostar de ir a festinhas e beijar garotos. Não conseguiu. Não se sentia à vontade. Arriscou socializar-se com as colegas de inglês e de balé, mais uma vez sem sucesso. Sem mãe e sem amigos, cada vez fechou-se mais.

Foi ao ver a filha pelos cantos que Maria Adelaide decidiu comprar o gato. Roberta disse que a menina não tinha amigos, não recebia telefonemas e parecia não se animar com mais nada – nem aquela receita de omelete especial que adorava preparar. Brownie não mudou as feições de Elisa, mas era evidente que lhe chamava a atenção, o que já era muito bom, pensava a mãe. Brownie, como todo bom gato, era frio – e calculista. Media a dose certa de manha para conseguir o que queria.

Só ele era capaz de fazer a garota deixar o quarto depois que chegava da aula. Na oitava série, se sentia incompreendida e tinha no gato seu confidente. Não que ela falasse ao bicho. Transmitia suas opiniões por telepatia e nunca soube se Brownie entendia, mas acreditava que sim. Todos os dias ela deixava a liturgia do quarto para buscar comida para o bichano. Essa hora Roberta estava no repouso e nem via a garota na cozinha. Tivesse visto, falaria que o gato acabara de comer. E isso Brownie não falava nem transmitia.

Os momentos com o gato preto e peludo eram lembranças, flashes que passavam pela cabeça da menina. O ritmo lento das passadas de quem mais pensa do que age a mantinha na calçada do parque de diversões municipal. Resolveu entrar. Comprou um passaporte da alegria, mas antes teve de dizer à moça da bilheteria que estava tudo bem. Mentira. Passeou entre os brinquedos. Desceu duas vezes o escorregador gigante para sentir o vento forçado no rosto. Nem isso foi capaz secar as lágrimas que marejavam os olhos, mas não escorriam.
Elisa via crianças com suas mães e algodão-doce. Tentava pensar em filhos e leva-los até ali, mas só se lembrava que ninguém fez isso por ela, e a imagem de Brownie era o que tinha de mais maternal em sua cabeça. Sentada em um banquinho em frente ao carrocel, comia melancolicamente pipocas. Sentiu novamente a dorzinha no calcanhar, mas desta vez a incomodou. Levantou a cabeça e viu a roda gigante. Entregou o bilhete ao maquinista e pediu que ele parasse a roda quando ela estivesse no topo. Nada mais lhe veio a cabeça.


Pedro Palazzo Luccas

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