Wednesday, March 29, 2006

A flor e o câncer


Recolho a flor desse jardim (ofereceram-na) e me delicio com a visão que ela me proporciona. Porém, não consigo esquecer a avenida que passa logo ali, a ferocidade dos automóveis que transitam e o passeio-da-tarde obsceno das senhoras. Não, não. O ímpeto é meu amigo, a força, a fraqueza, o tédio, o vício. Violências cotidianas que me arrancam da face a monotonia de ser. Fusão retardatária de vazios ancestrais, remorsos embebidos em álcool e força bruta dilacerada em palavras. Quietude. O silencioso rumor de um câncer, a lentidão de uma erupção vulcânica. Nada além disso, quem falou em poesia? Os passos de dança que conheço não são aceitos nos salões, minhas palavras explodem. Não por ódio, ou por mera escolha estética, mas por medo. Medo de ver o sangue estancar, medo da paralisia dos hábitos. Magma, cataclismo. O vento anunciador da tempestade, ou mesmo a calmaria posterior à destruição. Tudo isso e muito mais, sempre. As palavras recolhidas como estilhaços são armadas uma ao lado da outra como bombas feitas para, a qualquer momento, devastar todas as outras ao redor - ou eu mesmo. A angústia e a solidão produziram-nas, são vertigens de uma vida. Palavras arrancadas do dilaceramento do todo, recolhidas dos fragmentos que cortam meu corpo. Por isso não podem ser estórias, apenas imagens. Retrato desfigurado de uma identidade que já não existe. Ecos de um grito que não pode ser dado, falseamento e alheamento do real. Repetição. Podem ser a vida celebrada ou a morte concebida, podem vir do acaso ou da meditação, da contemplação ou da velocidade. Nunca do conformismo. O que importa mesmo, sempre, é que são, assim como eu, vítimas da loucura. Esquizofrenia. Invento o tempo, a morada que faço na linguagem me é dada por uma busca xamânica de outros eus, em diversos tempos, em várias vidas, em muitos lugares. Pessoas que desconheço, mas que me sussurram ao ouvido e me fazem gargalhar - egoísmo transfigurado. A fala que me conduz agora é essa, o transbordamento da vida que não pode se estancar e que, para fluir em toda sua força, precisa da re-invenção e da mentira - da morte à espreita. Somente assim a vida pode se mostrar - confrontando, debatendo, estilhaçando...
Agradeço a flor que recebi e a aperto, já seca, contra o peito, mas em troca ofereço meu câncer, pois somente no ímpeto, com palavras explosivas e imagens cruas de uma vida em constante ebulição, posso fazer minha morada calma e solar. Se for de um pacto que estamos falando, aqui está meu sangue, minhas vísceras. Reverencio o ser tratante e sorrio com o canto da boca lembrando que todo o pacto é uma mentira. Ele pisca os olhos - estamos combinados!

Carlos Eduardo Pinheiro

4 comments:

Anonymous said...

Já reli este seu texto umas quatro vezes. Cada vez me veio um sensação diferente. Parece até um texto de sobrevivência, ou você jogava pra fora ou te carcomia por dentro. O final mostra como vc conseguiu domar o bichano. Du caralho!

Anonymous said...

É claro que a gente nunca sabe qual o comentário correto a fazer, você quer um elogio ou a verdade?
Quer manter e garantir a amizade ou topas partir pra briga? Pois prefiro guardar as gentilezas e regras da boa educação pra momentos que realmente necessitem deles. Me diga se está preparado para o meu comentário ou se prefere que eu escolha minhas palavras no manual dos bons comentários. De qualquer forma nunca será pessoal mesmo.

contra said...

João Gabriel: acho que ali não houve domesticação, o que eu fiz foi montar no dorso do tigre! ;)
Juliana: Como eu já disse, a verdade não me interessa (deixem-na para os homens sérios) o que importa aqui é como celebramos a ausência dela. :)

Anonymous said...

já dizia o poeta: "Os poetas desejam, enfim, maquinizar a poesia como maquinizaram o mundo"
isso é lindo e talvez seja uma verdade.